Análise

Caravelas, onças e picadas

Se a falsidade humana já não é bem aceita, a do mosquito é imperdoável

Quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, depois de o Brasil já ter sido descoberto pelos índios, os espanhóis, os chineses e todos os povos que passaram por aqui mas esqueceram de pedir usucapião, a vida ainda era bem tranquila e mosquitos e onças eram os únicos incômodos. Das onças o país conseguiu se livrar racionalmente ao longo dos séculos. Ninguém racionou bala para dizimá-las e hoje elas é que são incomodadas por nós nos zoológicos. Já os mosquitos, não teve jeito. Se eram muitos em 1500, hoje são muito mais. É o único ser vivo dotado da incrível capacidade de estragar uma noite inteira de sono, ao lado do vizinho que resolve dar uma festa e não convidar quem mora ao lado.

Os mosquitos evoluíram com o país. Criaram fórmulas para sobreviver à guerra constante que travam contra a palma de nossas mãos. Eu acredito que eles também desenvolveram inteligência e passaram a recorrer à simulação a favor de uma picada. A gente fecha o quarto, descarrega um tubo inteiro de inseticida e respira metade do veneno até vê-los caindo em espiral, mortos, como avião metralhado. Falsidade pura. É só a futura vítima deixar o quarto, tossindo e intoxicada, que eles erguem a cabeça e retomam o voo. Se a falsidade humana já não é bem aceita, a do mosquito é imperdoável.

Os inoculadores também aprenderam táticas de guerra. A pessoa tranca a casa inteira lá pelas 19h, quando o sol ainda está alto e convidativo. Nenhum integrante da família tem autorização, porém, para abrir portas e janelas. A ordem é não colocar os pés na rua e caçar os mosquitos, custe o que custar. Incrivelmente nenhum representante dos sugadores é encontrado. Não estão nas paredes, atrás dos móveis, nas cortinas, dentro da casinha do cachorro ou nos cabelos da vó que dorme e baba no sofá, enquanto o ventilador resfria suas pernas. Mas eis que chega a noite e aquele barulho de esquadrilha ganha o ar. E como isso se explica? Camuflagem. Escolhem pontos estratégicos para se esconder. O local onde nenhum humano pensaria em procurar: o armário usado para guardar o veneno contra os mosquitos. Como o produto não tem mais efeito mesmo, ali passou a ser o porto seguro deles. Estratégia militar.

Eu digo para vocês, os pernilongos de hoje pensam. Logo vão competir com cães, gatos, peixes e ratos que passaram a ser chamados de esquilos na lista dos animais domésticos preferidos pelas crianças.

- Querido, tem que que comprar mais ração para o cachorro. E não esquece de trazer uma bolsa de sangue para o Fliti.

Para mim também não será surpresa alguma se as fábricas de veneno reconhecerem a falência de seus produtos e mudarem o foco mercadológico. Abandonarem os tubos e aparelhos elétricos e passarem a investir em armas de baixo calibre. Já vejo até o slogan: “M-22, a única com silenciador e mira noturna para você ter uma noite tranquila de sono”. Vai ter que ser na bala mesmo, assim como fizemos com as onças depois que Cabral desceu nessas terras e ficou todo picado na sua primeira noite tropical.

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